Há décadas, a discussão só existe por causa do Acordo de Livre-Comércio Mercosul e União Europeia
Especialistas brasileiros rebatem as acusações dos deputados franceses de que a carne brasileira é um lixo. Os ataques ocorreram durante uma votação simbólica sobre o Acordo de Livre-Comércio Mercosul e União Europeia, quando os parlamentares disseram que o gado do Mercosul é criado com hormônios de crescimento, uso massivo de antibióticos e ração com soja transgênica. “Nossos agricultores não querem morrer e nossos pratos não são lixeiras”, disparou o deputado francês Vincent Trébuchet.
Porém, os franceses usam e abusam de mentiras. Aliás, formato utilizado diariamente por políticos no planeta inteiro. Incluindo o Brasil. Representantes da Associação do Agro Brasil, da fiscalização da Pecuária e pesquisadores do setor analisaram as acusações. “Tudo o que o deputado falou é falso ou desconhecimento de como a comida é produzida lá e aqui. Ou, realmente, é uma intenção de manchar a imagem do Brasil”, rebateu Bruno Lucchi, diretor técnico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA).
Para começar, quatro fatos sobre o Brasil:
O uso de hormônios de crescimento é proibido.
Os antibióticos são usados apenas quando o animal está doente, com acompanhamento de médicos veterinários. Conforme cada componente usado, há um período de carência para o abate.
Existem aditivos para rações que são antibióticos, mas eles agem unicamente nos microrganismos que melhoram a digestão do gado.
O gado brasileiro, de fato, come soja transgênica. Contudo, não existem estudos que apontem que ela seja prejudicial à saúde. Esse seria o modo de produção mais comum no mundo inteiro. Além disso, a soja brasileira também é exportada para a França, para alimentar o próprio gado deles.
As falas dos parlamentares franceses aconteceram no mesmo dia em que o presidente do Carrefour global, Alexandre Bompard, pediu desculpas por questionar a qualidade da proteína animal do Mercosul.
HORMÔNIOS
Uma das acusações feitas pelos deputados franceses foi que a carne sul-americana é produzida com uso de hormônios. No Brasil, a Instrução Normativa n° 55 de 2011, do Ministério da Agricultura e Pecuária (MAPA) determina:
É proibido o uso, a importação, produção e comercialização de hormônios de crescimento.
É permitido o uso de hormônios para fins terapêuticos, no tratamento de doenças e reprodução ou inseminação.
Uma outra instrução proíbe o uso de hormônios de crescimento para suínos e aves.
Um dos hormônios utilizados usados para reprodução e inseminação é o estradiol, que faz com que todas as fêmeas entrem no cio no mesmo período. Ele é produzido naturalmente pelas vacas. “A aplicação artificial se dá em quantidades menores do que seria produzido pelo próprio animal”, explica Rondineli Pavezzi Barbero, professor de bovinocultura de corte na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Para se certificar que a norma está sendo cumprida, existe no Brasil o Programa Nacional de Controle de Resíduos e Contaminantes (PNCRC), em que é feita uma avaliação de risco com base técnica e no histórico de detecções. Em 2023, por exemplo, 99,76% da carne analisada pelo programa estava em conformidade.
ANTIBIÓTICOS
A deputada Helene Laporte associou a competitividade dos exportadores brasileiros ao “uso massivo de antibióticos”. Mas a venda de antibióticos é feita com base em prescrição médica veterinária, segundo Instrução Normativa nº 26, de 2009 do Ministério da Agricultura. O Brasil segue normas internacionais do Codex Alimentarius, que é um programa conjunto da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele foi criado em 1963 com o objetivo de estabelecer normas internacionais na área de alimentos, incluindo diretrizes, padrões de produtos e códigos de boas práticas. Além do Brasil, o Codex tem outros 188 membros, incluindo a União Europeia, da qual a França faz parte. O programa diz que antibióticos podem ser usados em tratamentos e prevenções. O Brasil também participa desde 2018 do Plano de Ação Global de enfrentamento às superbactérias, que são resistentes aos antibióticos.
Esse plano é de uma aliança entre OMS, Organização Mundial da Saúde Animal (OMSA), FAO e Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). Com base nele, o Brasil criou o próprio plano para este controle no uso de antibióticos, explica Henrique Pedro Dias, diretor de Política Profissional do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Anffa Sindical).
Existem, de fato, aditivos alimentares que são também antibióticos. No Brasil, algumas dessas substâncias são proibidas, conforme diferentes instruções normativas. A mais recente é a de n°01 de 2020, que proibiu os componentes tilosina, lincomicina e tiamulina. O professor Barbero explica que os aditivos estimulam o desenvolvimento de microrganismos que ajudam na digestão do alimento. Alguns deles, inclusive, podem fazer com que o animal emita menos metano, o que contribui para o efeito estufa. Ele disse ainda que existem diversas pesquisas que buscam alternativas, como o uso de óleos essenciais que podem causar o mesmo efeito.
SOJA
Os parlamentares também levantaram o uso de soja transgênica na ração do gado brasileiro como algo negativo. Mas a visão é equivocada. “Na verdade, toda a soja hoje do mundo é transgênica. Nós produzimos soja convencional e orgânica, tem mercado para isso”, explicou Lucchi, da CNA. “O farelo de soja usado na produção de ração que a França usa é o mesmo que é produzido no Brasil. Então, se a gente tivesse problema em alimentar o nosso animal com soja transgênica, eles também teriam lá”, complementou o diretor da CNA.
Em 2023, o Brasil exportou mais de 10,2 milhões de toneladas de farelo de soja para a União Europeia, terceiro maior destino do produto, segundo o Agrostat, plataforma do Ministério da Agricultura e Pecuária. Barbero aponta que não há estudos que digam que a soja transgênica faz mal à saúde de quem consome carne. E destaca que o uso de soja transgênica permite o menor uso de agrotóxicos, uma vez que a tecnologia é feita para gerar uma planta mais resistente às pragas e doenças. Diferente da Europa, o gado brasileiro come, majoritariamente, pasto e não ração em confinamento devido às condições climáticas. “Em 2024, vamos abater 38 milhões de animais. A nossa estimativa é de que 7 milhões vão passar pelo confinamento. Então, apenas 18% dos animais abatidos no Brasil ficam com uma em ração por um período de 3 a 4 meses”, concluiu Lucchi.