A agricultura familiar é muito importante e deve ser tratada com respeito e na sua real dimensão, para que informações equivocadas e mitos com a qual tem sido caracterizada não se prestem a fins políticos e a campanhas eleitorais e/ou ideológicas. Um diagnóstico correto é fundamental para nortear políticas públicas eficazes. É comum ouvir que seria responsável por 70% dos alimentos consumidos no país, mas esse dado não é verdadeiro. É o que constata o estudo “Caracterização do Perfil dos Estabelecimentos Enquadráveis no Pronaf e no Pronamp”, realizado pelo Centro de Agronegócio da Fundação Getúlio Vargas (FGV Agro), a partir do Censo Agropecuário de 2017.
Na realidade, o segmento responde por 23% do Valor Bruto da Produção (VBP) da agropecuária nacional, na qual 76,8% dos estabelecimentos são familiares, totalizando 3,9 milhões de unidades. Dois grupos minoritários, enquadrados no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf V) e Programa Nacional de Apoio ao Médio Produtor Rural (Pronamp Familiar), somam 1,16 milhão de estabelecimentos e concentram 83,3% da produção da agricultura familiar.
O maior grupo, o Pronaf B, reúne 53,9% dos estabelecimentos familiares, ou 2,73 milhões. Com renda bruta anual de até R$ 20 mil, respondem por 2,8% do VBP da agricultura familiar, com média de R$ 4.762 por estabelecimento. Seu cultivo é sobretudo estratégia de sobrevivência, complementada por aposentadorias e pensões, que chegam a representar 55,7% da renda total. Concentrados no Nordeste (60%) e no Sudeste (14,7%), esses produtores dedicam-se à criação de bovinos (18,3% do VBP do perfil), à produção de leite (16,5%) e de mandioca (12,2%).
O Pronaf V é composto pelos motores da agricultura familiar. Com renda anual entre R$ 20 mil e R$ 360 mil, reúnem 1,14 milhão de estabelecimentos, principalmente no Sul (35%) e no Sudeste (24,7%). Representam 16% de todo o VBP da agricultura familiar, com forte inserção em cadeias produtivas como leite, frutas tropicais e horticulturas.
Mais acima na escala está o Pronamp Familiar, formado por produtores com renda anual entre R$ 360 mil e R$ 2 milhões. Embora representem apenas 0,5% dos estabelecimentos (24,8 mil), são responsáveis por 13,8% do VBP da agricultura familiar, ou 3,2% de todo o VBP da agropecuária nacional. Suas atividades concentram-se em cadeias de maior escala e integração de mercado, como leite (17,8%), aves (13,1%), bovinos (11%) e suínos (10%). Estão localizados principalmente no Sul (52,7%) e no Sudeste (24,8%).
Além dos três perfis acima citados, há 870 estabelecimentos familiares que ultrapassam a faixa de R$ 2 milhões de renda bruta anual, concentrando 1% do VBP da agropecuária nacional. São produtores altamente capitalizados, com forte acesso a tecnologias e mercados, atuando em cadeias intensivas, como aves (26,7%), suínos (13,8%) e ovos de galinha (11%). Geograficamente, 42,9% estão no Sul, 26,2% no Sudeste e 13% no Centro-Oeste.
Porém, a agricultura familiar, ao contrário do que se propaga, não domina a produção de alimentos básicos da mesa brasileira, como arroz, milho, feijão, ovos e carnes, itens advindos majoritariamente de produtores não familiares, responsáveis por 77% do VBP nacional. Em contrapartida, o segmento ocupa papel estratégico em nichos fundamentais, respondendo por 93,7% do fumo, 80% da mandioca, 62,8% do leite, 62,2% da horticultura, 79% do açaí, 79% do morango, 75,8% da uva e 68,7% do abacaxi.
Outro aspecto muitas vezes ignorado é que os rendimentos das famílias rurais não dependem apenas da atividade agrícola. Em 2017, aposentadorias e pensões injetaram quase R$ 30 bilhões no campo, o que correspondeu a 19,8% da renda do segmento e a 18,6% entre os pequenos produtores que recebem até dois salários-mínimos. Trabalhos externos representaram mais 10,9% dos vencimentos desses grupos. Esse retrato desmonta visões homogêneas e romantizadas. A agricultura familiar é um mosaico: de um lado, milhões de produtores em condição de vulnerabilidade social, cuja renda vem majoritariamente de transferências e empregos fora da propriedade; de outro, segmentos altamente produtivos e integrados a cadeias de valor globais.
Para os 1,3 milhão de estabelecimentos cuja renda não ultrapassa um salário-mínimo, as políticas públicas prioritárias devem estar em políticas sociais, infraestrutura básica e geração de emprego não agrícola. Para os perfis mais produtivos, como Pronaf V e Pronamp, o foco deve ser em crédito ampliado, assistência técnica especializada e acesso a mercados. E, para além da segmentação, é urgente revisar os critérios de enquadramento da agricultura familiar, de modo a incluir quem complementa sua renda em outras atividades, mas enfrenta limitações significativas no campo.
A agricultura familiar brasileira não é uma só, mas muitas. Acredito que, ao adotar políticas públicas baseadas em dados concretos, nosso país consiga potencializar o papel do segmento na segurança alimentar, no desenvolvimento rural e na economia.
João Guilherme Sabino Ometto é engenheiro (Escola de Engenharia de São Carlos – EESC/USP), empresário e membro da Academia Nacional de Agricultura (ANA).