Especialista alerta que pactos privados podem impor critérios além da lei, criar assimetrias no mercado e gerar insegurança jurídica para produtores brasileiros.
O crescimento das exigências internacionais para comprovação contínua de regularidade ambiental na produção agrícola reacendeu um debate sensível entre especialistas do direito e representantes do agronegócio. A discussão envolve até que ponto acordos privados firmados por grandes tradings podem interferir no mercado, impor padrões além da legislação e comprometer a segurança jurídica dos produtores brasileiros.
A advogada Márcia de Alcântara, especialista em Direito Agrário, afirma que parte dessas exigências ultrapassa o campo da sustentabilidade e passa a funcionar como mecanismos de controle privados. Segundo ela, “esses acordos privados transferem ao produtor o ônus de provar continuamente que não causa dano ambiental, invertendo a presunção de legalidade e de boa-fé de quem cumpre o Código Florestal e demais normas”. Quando tais exigências se tornam condição de acesso ao mercado, afirma, há tensão direta com princípios constitucionais como o devido processo e a livre concorrência. “Quando a obrigação é padronizada e coordenada por agentes dominantes, deixa de ser mera cláusula contratual e passa a se aproximar de uma restrição coletiva, com efeito de boicote”, diz.

A Moratória da Soja é apontada como o caso mais emblemático. O acordo, que impede a compra de grãos produzidos em áreas desmatadas após 2008 na Amazônia, teria características de regulação privada ampla. “Há três pontos críticos nesse arranjo: a coordenação por associações que concentram parcela relevante do mercado; a troca de informações sensíveis e listas de exclusão que não são públicas; e a imposição de padrões mais severos do que a legislação brasileira”, avalia Márcia.
O tema já ultrapassou a esfera do setor e entrou no radar institucional. Uma liminar do ministro Flávio Dino, no Supremo Tribunal Federal, suspendeu processos judiciais e administrativos sobre a Moratória até julgamento definitivo, para evitar decisões conflitantes. Em paralelo, o Cade decidiu aguardar o posicionamento do STF, mas mantém atenção sobre eventuais trocas indevidas de informações entre empresas.
Entidades como CNA e Aprosoja-MT defendem que a apuração concorrencial não deve ser paralisada, alegando que a adoção de critérios privados pode restringir o acesso ao mercado e distorcer preços. Para os produtores, o risco é a substituição da regulação pública por regras opacas.
Márcia destaca que o Brasil já possui um marco ambiental robusto, com Código Florestal, CAR georreferenciado, monitoramento por satélite e políticas consolidadas. “Exigências externas precisam respeitar a proporcionalidade, a transparência e o devido processo. Caso contrário, correm o risco de ferir a legislação brasileira e distorcer a concorrência”, conclui.


