14 de abril de 2020

Os fundamentos sustentam o mercado pecuário

É uma grande verdade que a cadeia de carne bovina sofrerá com os efeitos da pandemia de COVID-19, afinal, ninguém passa incólume a algo dessa magnitude. Mas isso não significa que os fundamentos devam ser esquecidos. Aliás, você ainda se lembra de como estava o mercado antes desse furacão chegar? A Peste Suína Africana (PSA) quebrou pela metade o estoque chinês de proteínas animais, um mercado de 1,4 bilhão de habitantes e que viu seu PIB crescer 6,1% em 2019. Sim, foi a taxa de crescimento mais baixa já registrada para o país asiático nos últimos 29 anos, mas há de convir que 6% de crescimento para um mercado de 1,4 bi de habitantes que têm 50% menos carne disponível é algo que mexe com os preços. E de fato mexeu! A corrida chinesa por proteínas se alinhou à retomada do crescimento econômico brasileiro em um rally de impressionar. Entre outubro e dezembro de 2019, os preços do boi gordo em São Paulo subiram 28%, considerando as médias dos respectivos meses (e não fundo e pico de mercado). A demanda prometia ser quente por todos os lados.

Pelo ângulo da oferta, o mercado de bezerros sinalizava estar buscando os maiores patamares nominais para a categoria, no melhor estilo 2015, quando vivemos o chamado “apagão de bezerros”. Com isso, o abate de vacas se mantinha em baixa, de olho no preço da reposição aquecido. E para deixar o rolê ainda mais intenso, o abate de novilhas atingiu recordes históricos, o que sugere que os bezerros delas que não foram produzidos poderão alongar a próxima fase de alta do ciclo pecuário. Alguém já viu esse filme antes? E aí veio o COVID. O que dizer? Não dá para negar o efeito devastador de um troço como esses, inclusive sobre o apetite do brasileiro por carne bovina e, por que não dizer, do mundo?

Os EUA já se tornaram o novo epicentro do problema, com quase 600 mil casos. Há menos de um mês, eram 50 mil. O potencial de disseminação do vírus impressiona. Apesar do pacote de estímulos do governo, da ordem de US$ 2,2 trilhões, o desemprego saltou de 3,5% em fevereiro para 4,4% em março, a maior disparada desde março de 2009, na ocasião uma resposta à crise do subprime, que colapsou globalmente a economia. Para se ter uma dimensão, nesta semana, o Walt Disney World Resort divulgou que suspenderá temporariamente 43 mil trabalhadores, conforme seus parques temáticos permanecem fechados. Ou seja, abril deve trazer números ainda piores. O que há apenas 26 dias era projetado como uma onda de 14 milhão de pedidos de auxílio-desemprego se tornou um tsunami com potencial para atingir 50 milhões de trabalhadores. A situação é tão caótica que as regras de funcionamento de serviços básicos estão sendo discutidas, como a atividade de plantas frigoríficas, já que foram registradas mortes de trabalhadores diagnosticados com COVID em plantas da Swift. A Amazon criou uma lista de espera para entregar compras de supermercado. A zeragem dos juros pelo FED não vai fazer nem cócegas em um mercado que já operava com taxas artificialmente reduzidas e deixa pouco espaço para manobras monetárias.

Com a Europa fechada, os países estudam a emissão de “coronabonds” como medida para ajudar a conter a crise, o que deixaria uma Zona do Euro com a situação fiscal ainda mais fragilizada. O PMI (Purchasing Managers Index) é o indicador que mede a saúde financeira do setor industrial. Em seu cálculo, ele considera novos pedidos, níveis de estoque, produção, entregas de fornecedores das indústrias. O número registrado para a Zona do Euro caiu para 31,4 em março em relação a 51,6 em fevereiro, o que é um recorde desde o início da série. Como sua situação econômica já era dramática, o governo espanhol começou a afrouxar as medidas de isolamento, mesmo diante de mais de 170 mil casos confirmados e 18 mil mortes por COVID após um mês de lockdown e queda brusca da atividade econômica. Na Itália, a contagem de novos casos confirmados começou a afrouxar, mas o número de mortes já ultrapassa 20 mil dentro de um total de 160 mil enfermos.

Na China, a população começa a retornar à circulação, mas ainda há uso de máscaras, distanciamento social, medo de sair a restaurantes e controle de temperatura para que seja possível frequentar alguns estabelecimentos comerciais. A província de Hubei, coração do surto de covid-19, suspendeu as restrições de saída para aqueles que atestam sua saúde. Wuhan, a capital regional e onde o surto começou, fez o mesmo a partir no dia 8 de abril. Com embarques antes totalmente suspensos, entre janeiro e fevereiro, novos containers começaram a ser enviados para a China agora, mas os navios ainda estão em trânsito e são referentes a pedidos justamente naquele período, quando a crise atingia seu ápice. Isso indica que os preços da carne vendida para o país asiático nos próximos dois meses não deverão sofrer pressão positiva, especialmente porque, com a crise, os estoques chineses não foram sacrificados.

No Brasil, a Selic foi cortada para 3,75% para arrasar de vez com o Dólar. Isso praticamente zerou os juros reais. Há possibilidade de taxa cair mais 0,5%. Enquanto isso, a câmara aprovou o pedido do governo para estabelecer estado de calamidade pública por CONVID-19. Na prática, isso derruba a necessidade de respeitar o teto de gastos. É bom para conter a disseminação do vírus, desde que as medidas corretas sejam aplicadas, mas é ruim a situação fiscal do país e amplia em muito o prazo projetado de recuperação econômica. Com isso, o risco país aumentou, mas é bom dar um desconto para esse indicador, afinal, isso está ocorrendo no mundo todo. O setor de hotelaria apresenta taxa de cancelamento de 90%, as companhias aéreas brasileiras pediram socorro ao governo e aparentemente receberão um pacote de R$ 10 bilhões em empréstimos. O isolamento tirou as pessoas das ruas e ampliou o fluxo maior nos supermercados, em reflexo do deslocamento da demanda do food service para os lares. E é a partir deste ponto que voltamos a falar de boi. O que ocorre com a pecuária eu dividiria em três momentos:

Isolamento espontâneo e redução inicial da circulação de pessoas, que levou à transferência parcial do consumo do food service (restaurantes e refeitórios) para os lares. Em seguida, foi momento de os governos dos estados decretarem o fechamento de seus respectivos comércios, acentuando ainda mais a queda da atividade econômica. Com isso, as pequenas e médias empresas começaram a sentir o baque e já colocaram em prática algumas medidas para conter a queima de caixa, como antecipação de férias, renegociação de salários e fechamento antecipado.

Nesse segundo momento, já com o consumo bem concentrado nos supermercados e a forte percepção de arrocho econômico, houve migração das compras de carne bovina para outras proteínas com menor valor agregado, como ovos, embutidos, frango e suínos. Não por coincidência, em resposta ao ajuste negativo de demanda, os frigoríficos ajustam a produção também negativamente, paralisando operações (Minerva – 4; Marfrig – 1; JBS – 5). Frigoríficos menores, especialmente os de mercado interno, também cortaram a produção e anunciaram paralisação. Foi aí que o preço do boi recuou para se ajustar à nova realidade – R$ 190,00 a 195,00/@ em São Paulo.

Com o ajuste produtivo e o enxugamento do mercado de carne, os preços pecuários logo encontraram um piso, que é exatamente onde nos encontramos no momento. Um ponto importante a se destacar é que daqui para a frente, não será mais possível lançar mão da estratégia de manter os animais nos pastos, já que a estiagem está jogando o bafo frio do inverno em boa parte do Brasil Central.

A China continua sendo uma boa promessa, mas dado que devemos colher os efeitos do coronavírus sobre os embarques atuais para aqueles mercados (já que os containers saem agora, mas não referentes a pedidos realizados entre dezembro e janeiro), o apetite do país asiático não deve aumentar expressivamente até a metade de maio, inclusive fazendo com que os preços negociados sigam a mesma tendência. Tudo isso posto, é possível dizer que, resfriadinho ou não, a pandemia de COVID-19 certamente será lembrada como uma das maiores crises da história.

Entretanto, como não há mal que sempre dure, é bom voltar ao início da nossa conversa. Como pode ser que aquele alinhamento incrível de astros (lembram-se de quem disse essa frase que se tornou célebre?) tenha se tornado uma guerra de trincheira sem data para acabar?

Na verdade, nenhuma das duas realidades deixa de existir, de modo que os fundamentos continuarão sustentando o mercado pecuário. Obviamente, restará uma ressaca forte para curar, mas é importante lembrar que a PSA simplesmente liquidou 40 milhões de toneladas de proteína animal do estoque global,  além de ainda não termos sentido os efeitos da retenção de fêmeas sobre o preço do bezerro, o que sugere que os preços do boi gordo têm fôlego para caminhar mais ao longo da próxima temporada. E considerando um prazo mais curto de tempo, pensando nos próximos três meses, é importante lembrar que o retorno da China e do consumidor interno deverão ocorrer em consonância com a redução da oferta de gado, ao redor de julho. Por isso, o alinhamento de astros ainda permanece ao fundo ditando a temperatura do mercado, até mesmo neste momento sombrio e cheio de incertezas.

Um abraço a todos e até a próxima!

Lygia Pimentel é médica veterinária, economista e diretora-executiva da Agrifatto.

 

Canal AgroRevenda

 

Papo de Prateleira

 

Newsletter

Receba nossa newsletter semanalmente. Cadastre-se gratuitamente.