30 de maio de 2024

É perigo? Tem risco? Ou mera percepção de risco?

Sabe aquela história da diferença entre fato e versão? É muito parecida com as diferenças entre perigo, risco e percepção do risco. Vamos a elas. Perigo é uma condição ou um conjunto de circunstâncias que têm o potencial de causar ou contribuir para ocasionar uma lesão ou morte, sendo intrínseco a uma substância ou a um evento. Os mesmos autores conceituam risco como a probabilidade ou chance de lesão ou morte pela concretização de um perigo. Assim, risco é uma função da natureza do perigo, do potencial de exposição ao perigo, das características da população exposta, da probabilidade de ocorrência, da magnitude da exposição e das consequências.

Análise de risco
A análise de risco é um procedimento científico. Consiste em aplicar modelos e algoritmos matemáticos, lastreados em bases de dados, que determinam os efeitos da exposição de um indivíduo, ou de um conjunto deles, a um determinado perigo. Ilustremos com algo do nosso cotidiano: é assim que se determina o risco de efeitos perniciosos de um medicamento à saúde humana. O gerenciamento do risco faz parte da análise, determinando quais procedimentos devem ser tomados para proteger alguém de um perigo, evitando ou mitigando o risco. São as instruções que aparecem na bula dos remédios e na receita do médico, como a dose, a frequência, a hora e o tempo de uso de um medicamento. E os procedimentos em caso de surgimento de sintomas adversos. Ou seja, o mesmo que é requerido para a receita agronômica.

Os órgãos oficiais de governo são responsáveis por estabelecer o risco de uma substância, lastreado exclusivamente em informações científicas. O risco pode ser reavaliado com base em novas informações ou na alteração do método de análise ou de cálculo. As reavaliações sempre são mais severas e restritas do que a situação anterior. No caso de agrotóxicos, a abordagem da Análise de Risco de Pesticidas é recomendada pelos órgãos internacionais que tratam do tema – como a FAO – e adotada pela maioria dos países. No mundo desenvolvido, a exceção é a União Europeia, que ainda mantém a vetusta abordagem de perigo – e sua ferramenta, o princípio da precaução – o que gera muita confusão e comparações indevidas.

Conceitos de toxicologia
Para auxiliar a separar fatos de mitos, riscos de sua percepção, ou diferenciar perigo de risco, é fundamental atentar para alguns conceitos toxicológicos:

Dose Letal 50 (DL50):
é a dose de uma substância química que levou a óbito 50% das cobaias em testes de laboratório. Quanto mais elevada for a DL50, mais seguro é o produto.

Limite Máximo de Resíduo (LMR):
é a quantidade máxima de resíduo de agrotóxico oficialmente aceita no alimento, em decorrência da sua aplicação adequada, desde a sua produção até o seu consumo, expresso em miligrama de resíduo por quilograma de alimento.

Ingestão Diária Aceitável (IDA):
é a quantidade estimada de substância presente nos alimentos que pode ser ingerida diariamente, ao longo de toda a vida de um indivíduo, sem oferecer risco à sua saúde, expressa em miligrama de substância por quilograma de peso corpóreo.

Para assegurar que a saúde do consumidor está devidamente protegida, no cálculo da IDA, a maior dose que NÃO ocasionou quaisquer alterações metabólicas nos organismos em teste é dividida por 100. Assim, a IDA representa apenas 1% da dose que NÃO causou qualquer problema de saúde nos animais em teste. Logo, a probabilidade de que o valor calculado da IDA venha a causar algum problema de saúde em humanos é muito baixa, quase nula.

Percepção do risco
Ao contrário do risco – um cálculo científico e preciso – a percepção do risco é uma avaliação totalmente subjetiva, realizada por uma pessoa isolada, ou por um conjunto delas. Percepção independe de fundamentação científica, sendo um comportamento descrito na psicologia de populações. Um exemplo clássico de quanto a percepção de risco pode ser errônea é trocar o avião pelo automóvel, devido ao temor de morrer em acidente aéreo. O que dizem as estatísticas? A probabilidade de morrer em um acidente de avião é de uma em 11 milhões. Já a probabilidade de morrer em acidente de carro é de uma em 5 mil. Mais de duas mil vezes maior.           Entrementes, muitos cidadãos preferem trocar o carro pelo avião, com o argumento (falso) de o risco de acidente ser maior em viagens aéreas. Um mito clássico, derivado de uma percepção de risco equivocada.

Um exemplo
Um argumento eventualmente utilizado por consumidores é que os alimentos estão contaminados por pesticidas e constituem um sério risco à sua saúde. Nada como um exemplo prático para demonstrar o quanto a percepção de risco se afasta do risco efetivo. Consideremos o controle de uma praga da batata, descrito no livro Agricultura, fatos e mitos. Suponha-se uma aplicação do inseticida deltametrina em solução aquosa. Sua DL50 oral é de 5.000 mg/kg de peso corpóreo; o valor da IDA é de 0,01mg/kg de peso corpóreo; e o LMR de 0,01mg/kg de batata.

Para que não haja controvérsias, vamos supor o pior caso possível: que toda batata sempre tenha o nível máximo de resíduo permitido (embora seja impossível de acontecer na prática). Consideremos um brasileiro médio, com peso de 80 kg . A ingestão diária de uma pessoa com esse peso, com garantia de não haver qualquer risco à sua saúde (IDA), será de 0,8mg/dia do inseticida (0,01mg/kg x 80kg). Como na nossa hipótese de resíduo máximo cada quilo de batata tem 0,01mg de resíduo, um cidadão com o peso acima pode ingerir, diariamente, o seu próprio peso em batatas, ou seja, 80 kg de batata por dia (0,8mg de deltametrina que podem ser ingeridos ÷ 0,01mg/kg de batata), durante toda a sua vida, sem que haja qualquer problema de saúde devido à presença de resíduos. Haja batata!

Prosseguindo com os cálculos. Em teoria, para que seja atingida a DL50, seria necessário consumir os mesmos 80 kg de batata todos os dias, durante 1.369 anos, quando haveria 50% de probabilidade de óbito ocasionado por intoxicação pelo inseticida. Agora, se o consumo fosse o factível – embora exagerado – de apenas 200 g de batata/dia, então seriam necessários, teoricamente, 583.019 anos para atingir o valor da DL50. Não apenas é impossível para uma pessoa consumir 80 kg/dia de batata – ou viver 1.369 anos! – como o inseticida se degrada a partir de algumas horas após a sua ingestão. Logo, o organismo nunca irá acumular a quantidade suficiente para intoxicar o indivíduo, mesmo que ele vivesse os 583 mil anos.

O exemplo demonstra a sobejo que o risco de intoxicação pelo resíduo desse agrotóxico está absolutamente controlado. Os cálculos constituem um fato, que demonstra a eliminação do risco, consequentemente do equívoco da percepção do risco. E por que o risco está eliminado? Lembremo-nos da menção acima ao gerenciamento do risco. Faz parte da análise de risco eliminar ou mitigar o risco identificado. Para os alimentos isso é efetuado com o estabelecimento dos parâmetros toxicológicos adequados, em especial o limite máximo de resíduos (LMR), que garante a inocuidade do alimento. Concluindo, siga a Ciência e sua ferramenta de análise de risco. As percepções de risco nada têm de científico, via-de-regra não refletem a realidade. E alimente-se tranquilamente, nossos alimentos são seguros.

Décio Luiz Gazzoni é integrante do Conselho Científico Agro Sustentável (CCAS). 

Canal AgroRevenda

 

Papo de Prateleira

 

Newsletter

Receba nossa newsletter semanalmente. Cadastre-se gratuitamente.